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terça-feira, 13 de março de 2012

[JC] Quem é Jorge?


Surdo está preso em Pernambuco. Já foi julgado e condenado, mas ninguém sabe seu sobrenome, endereço nem onde está a família. Mistério se arrasta há três anos


Gabriela López

Do JC Online

 / Foto: Gabriela López/Especial para o JC

Foto: Gabriela López/Especial para o JC

Ele está preso há três anos. Não tem documentos, endereço nem pista de onde está sua família. As lembranças concretas são poucas. É surdo. Não sabe Libras nem é alfabetizado. A única identificação que possui é uma tatuagem no antebraço direito, feita no presídio: “Jorge”, que ele diz ser seu nome. O sobrenome? Abana a cabeça em sinal de “não”. Não sabe. Idade? Diz ter 18. Um caso que desafia os órgãos públicos e mascara um certo descaso para resolver o mistério.
Jorge foi preso no dia 5 de fevereiro de 2009. Segundo a sentença da Justiça, invadiu uma residência em Jardim Atlântico, Olinda, e estava colocando objetos dentro de uma mochila, quando a dona da casa chegou. Jorge a ameaçou durante três horas com uma faca de cozinha, até que outra pessoa chegou no local e ele fugiu. Durante a fuga, foi detido. Ainda de acordo com a sentença, confessou o crime na delegacia e na audiência. Do Centro de Triagem (Cotel), em Abreu e Lima, Grande Recife, seguiu para o Presídio de Igarassu e, no último dia 17, foi transferido para a Penitenciária Agro-Industrial São João, a antiga PAI, em Itamaracá.
“Desde que foi preso, Jorge só teve direito a um intérprete de Libras no julgamento. No presídio, teve tuberculose. Foi tratado sem poder dizer direito o que estava sentindo. Ele tem direito a um aparelho auditivo pelo SUS [Sistema Único de Saúde], mas precisa de um CPF”, afirma a conselheira do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Coned) e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB-PE, Ana Borges, que foi encarregada há alguns meses de desvendar o mistério em torno do detento.

Com a ajuda da intérprete de Libras do Coned, Jaqueline Martins, Jorge contou à reportagem que entrou na casa da mulher para se proteger de uma briga que viu na rua. Mas não adianta relembrar o crime. Jorge foi condenado a seis anos de prisão em regime semi-aberto por roubo, violação de domicílio e concurso material (quando são cometidos dois ou mais delitos em uma ou mais ações). Já cumpriu metade da pena. Em regime fechado. Não pode sair do presídio sem ter endereço nem um familiar. Como já cumpriu um terço da pena, pode até receber liberdade condicional. Mas não tem para onde ir.

Quando perguntam onde mora, Jorge gesticula que lembra de um giradouro, uma favela e um rio. Funcionários da Delegacia de Olinda e da Justiça o levaram para a comunidade V-8, em Olinda, que tem essas características. Na primeira vez, ele foi algemado. “Como um surdo vai se comunicar com as mãos presas?”, questiona a intérprete Jaqueline Martins. Ele reconheceu uma casa pela caixa d’água, mas não conseguiu se expressar. Na segunda vez, voltaram à residência onde tem a caixa d’água, mas estava abandonada.

A Justiça também procurou o Instituto de Identificação Tavares Buril (ITB). Tiraram uma digital dele e confrontaram com o banco de dados. Nenhum registro. Jorge costuma gesticular uma viagem. Quando passa pela Rodoviária do Recife, fica agitado. Acreditam que ele seja de outro Estado. Mas ficou por isso mesmo. Ninguém foi atrás.

Na conversa com a reportagem, ele conta que trabalhava numa oficina de carro. Tem quatro irmãos e dois filhos. Há muito tempo não vê os pais. Diz que tem lapsos de memória. Foi bem tratado nos dois presídios. Gosta de ficar na dele, observando as pessoas. No meio da conversa, a expressão de calma muda para de impaciência algumas vezes: não estão entendendo o que ele gesticula. A intérprete pede calma e recomeçam. Ele diz que tinha uma esposa. Chamada Vera Lúcia Bonifácio Lira, estava grávida em 2009. No dia do crime, ela assinou um termo da Polícia Civil de que estava ciente da prisão. Ninguém procurou saber dela mais informações sobre o detento. Vera Lúcia não apareceu mais.

» Veja parte da entrevista de Jorge com a ajuda da intérprete Jaqueline Martins:

E Jorge continua passando quase despercebido pela polícia, pela Justiça, pelo sistema penitenciário. Se não estivesse ali, na frente das pessoas, corpo franzino, silencioso, olhar baixo, dois relógios - um em cada pulso -, ninguém acreditaria que ele existe.
RESPOSTA - Na quinta-feira (1º), o juiz titular da 2ª Vara de Execução Penal Regional, Cícero Bittencourt, visitou a penitenciária Agro-Industrial São João, onde Jorge cumpre pena. Segundo ele, será realizada uma nova tentativa para localizar familiares do detento. Caso não haja êxito, Jorge poderá receber uma certidão de nascimento por meio do registro tardio concedido por decisão judicial.

Tanto a juíza Ângela Maria Teixeira de Carvalho Mello, que julgou o processo de Jorge, como a gerente técnica jurídica penal da Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), Albenice Gonçalves, afirmaram que todas as medidas possíveis foram tomadas para achar a família de Jorge. "Conversamos com outros presos para saber se conheciam ele, fomos em três ou quatro endereços de Olinda achando que era a casa dele, levamos um intérprete da Associação de Surdos para conversa com ele e tentar descobrir alguma coisa, procuramos o ITB, mas nada adiantou", relata Albenice.

Segundo ela, a secretaria está tentando encaminhá-lo a uma casa de apoio em Piedade para ele poder sair da prisão e ter um lar provisório. Após definir esta situação, a 2ª Vara de Execução Penal Regional irá analisar o benefício da liberdade condicional.

*NOTA DE ESCLARECIMENTO: Na sexta-feira (3), Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência orientou a reportagem a usar apenar o termo surdo para se referir à deficiência de Jorge. Primeiramente, o Conselho tinha instruído a escrever surdo-mudo, já que ele não sabe Libras, mas a nomenclatura foi mudada recentemente.


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